Vapor Trail – Parte 1

Stratospheric traces of our transitory flight
Trails of condensation held in narrow bands of white

A música tem acompanhado a história da humanidade desde tempos imemoriais. Um pequeno pedaço de madeira batendo num tronco ou pedra pode ter acompanhado nossos ancestrais em uma noite escura, ou usado como incentivo para afastar inimigos. Com o tempo e evolução da humanidade, os intrumentos musicais começaram a surgir, grosseiros a princípio, e mais refinados posteriormente, o que permitiu à Humanidade migrar do fundamento do ritmo para o fundamento da melodia e da harmonia. A música é a trilha sonora da história da Humanidade e, como tal, mexe com a emoção de todos nós.

Tanto isso é verdade que, se você ouvir uma determinada música na rádio – ou no Spotify – que há muito tempo você não ouvia e esta música de alguma forma marcou algum acontecimento no vôo transitório que é a sua vida, aquele determinado momento volta à sua memória, muitas vezes com as emoções da época. Pode ter sido a música que tocava quando você deu o seu primeiro beijo, outra música que tocava durante sua primeira viagem de avião, ou quando recebeu a notícia do falecimento de um amigo ou familiar. Pode até ser algo “besta”: toda vez que escuto Red Sector A, do Rush, me lembro de um dia em específico em que estava a caminho da faculdade num ônibus vazio – as aulas do dia haviam sido canceladas e eu não estava sabendo.

Ainda assim, cada um de nós pode ter uma ou duas músicas que são especiais. São músicas que falam alto à nossa alma ou que normalmente possuem um apelo emocional tal, que passamos a assumir que aquela música é a “minha música”. Não são músicas que nos relembram um momento ou emoção em específico, mas sim que nos fazem balançar a cabeça, sorrindo e pensando: “é, sou eu”. O mundo pára, seu coração bate no ritmo da música, e internamente parece que todo o Universo faz sentido.

O mais divertido – ou intrigante – é que não é possível descrever isso para outras pessoas, ou fazê-las “entender” o que está se passando dentro de você. É algo transcendente, quase mágico, e que com o tempo aprendemos a apreciar em silêncio, sem deixar transparecer para o exterior; essa música passa a viver dentro de nós.

A “minha música” é Vapor Trail.

Meu objetivo com esse texto não é convencer ninguém que Vapor Trail é a melhor música já foi ou será escrita, nem tentar justificar os motivos pelos quais ela o é. O objetivo aqui é compartilhar com vocês algo íntimo, e talvez ajudá-los a perceber a música que existe dentro de cada um de vocês.

The sun is turning black
The world is turning gray
All the stars fade from the night
The oceans drain away

O ano era 2001 e, após um longo hiato de 5 anos, Rush iria lançar um novo disco chamado Vapor Trails. Mais do que um trabalho artístico, foi um trabalho de humanidade e amizade, em que Alex Lifeson e Geddy Lee suportaram Neil Peart a voltar a ser o melhor baterista do mundo após todas as tragédias pelas quais ele passou, produzindo o álbum em 14 meses. Não vou entrar em muitos detalhes aqui, mas sugiro que você, leitor, assista o documentário Rush: Beyond The Lighted Stage para compreender a história muito melhor do que eu seria capaz de descrevê-la.

O álbum “vazou” na internet em meados de Abril de 2002, um mês antes do lançamento. No dia em que vazou eu estava na república onde morava com colegas de trabalho, e consegui baixar uma cópia. Gravei num CD, pedi licença aos colegas dizendo que eu tinha que resolver alguns assuntos pessoais, e me tranquei no quarto. Coloquei o disco recém gravado, ainda quente, num CD Player que eu tinha, ajeitei o fone de ouvido, aumentei o volume e apertei play, ansioso por escutar músicas novas da banda que havia me acompanhado em todos os dias da minha vida nos 12 anos anteriores. Eu estava nervoso, ansioso, empolgado e até amedrontado: e se eles tivessem perdido a química entre eles? E se o Neil tivesse se tornado um Charlie Watts na bateria? E se as letras das músicas não fossem tão inspiradoras? E se…

Estas dúvidas passaram pela minha mente nos milissegundos entre o CD iniciar seu giro no aparelho e os bits serem transformados em impulsos elétricos que foram convertidos no início de One Little Victory, ressoando apenas com a bateria que refletia, quase num grito desesperado, que o Neil Peart não tinha virado um Charlie Watts. Antes que qualquer outro instrumento aparecesse, pausei a música e chorei, de alívio: eles tinham conseguido! O álbum poderia ter terminado ali, aos 2 segundos, e eu estaria feliz e realizado! Eles estavam de volta!

Voltei a música ao início, apertei o play mais uma vez, desta vez disposto a não pausar e escutar o disco de ponta a ponta. One Little Victory, Ceiling Unlimited, Ghost Rider, Peaceable Kingdom, The Stars Look Down e How It Is tocaram em sequência. Minha cara devia ser essa aqui:

Horizon to Horizon
Memory written on the wind
Fading away, like an hourglass, grain by grain
Swept away like voices in a hurricane

Então começou Vapor Trail… o sorriso não saiu da minha cara, mas algo estava diferente. Me senti atropelado, e as emoções vinham aos borbotões. Me lembro de olhar para a janela aberta e ver a lua crescente, e parecia que ela sorria para mim. Não, eu nunca usei drogas!

Mas Vapor Trail havia me deixado em transe!

De horizonte a horizonte, as memórias escritas ao vento vão se desmanchando, feito uma ampulheta a cada grão de areia, varridas feito vozes em um furacão.

Neil Peart, em Vapor Trail

Me lembrei de viagens que fiz, tais como a primeira vez numa praia ou a primeira vez que fui sozinho para São Paulo. Momentos que nem mesmo me lembrava – felizes ou tristes – retornavam como um filme em minha mente, enquanto ouvia a melodia da música da minha vida ativando sentimentos que nem mesmo sabia que eu poderia ter. Foram 4:57 de pura magia, sendo que ao final, eu estava com as lágrimas rolando. Eram minhas memórias, mas pareciam tão distantes, tão inalcançáveis, que pareciam ser de uma outra vida.

In a vapor trail…

Depois vieram Secret Touch, Earthshine, Sweet Miracle, Nocturne, Freeze e Out of the Cradle, tão boas quanto todas as demais músicas do álbum. Ao final, estava com a sensação que os três canadenses haviam superado todas as adversidades e se mantinham como o grupo musical mais coeso que já tive a honra de apreciar.

Os dias se passaram e o álbum tocava em loop contínuo no trajeto de ida ou volta ao trabalho ou enquanto eu trabalhava. Em alguns meses, fiquei sabendo que eles viriam em turnê pela primeira vez no Brasil, e já garanti de comprar o meu ingresso – e os ingressos para a futura Confraria (algum dia vou falar sobre meus amados irmãos em Rush). A semana de 19 a 22 de Novembro de 2002 foi espetacular, com direito a autógrafo do Geddy Lee no CD Vapor Trails e um aperto de mão, e um show inesquecível no Morumbi.

Eu estava realizado: tinha encontrado a minha música, tinha visto a Santíssima Trindade ao vivo em terras tupiniquins – não tocaram Vapor Trail, mas estava valendo mesmo assim.

No fim do ano seguinte meu segundo filho nasceu quase doze meses após o show do Rush – no caminho para a maternidade para acompanhar o parto e no retorno para casa após ele nascer, toquei em loop Sweet Miracle – , mudei de emprego e cidade novamente, e o álbum Vapor Trails se mesclou na playlist da minha vida com os demais álbums do Rush, tocando as músicas de forma aleatório dia após dia nos três anos seguintes. E todas as vezes que Vapor Trail tocava, eu era mais uma vez transportado àquele lugar mágico.

E, ainda que de vez em quando eu fosse resgatado do “sol negro”, do “mundo acinzentado” com as “estrelas apagadas nas noites” e os “oceanos ressecados” sempre que a minha música tocava, o mundo foi se fechando de tal forma ao meu redor, dentro e fora de mim, que no meio de 2007 tomei uma decisão que moldaria o resto de meus dias.

Eu tiraria minha própria vida.

In a vapor trail