Vapor Trail – Parte 2

Se você ainda não leu a Parte 1, páre e leia.

Atmospheric phases make the transitory last
Vaporize the memories that freeze the fading past

Essa decisão, em verdade, não foi tomada de forma indiscriminada ou leviana. Pelo contrário, era algo que vinha num crescendo desde, justamente, alguns meses antes do lançamento de Vapor Trails. A mistura de dificuldades financeiras, a troca de um emprego por outro com um futuro mais promissor mas com um salário três vezes menor e, principalmente, uma infelicidade crônica por causa de um casamento que, em retrospecto, talvez não devesse ter ocorrido, foram os principais fatores que eu, um jovem inexperiente de 28 anos de idade à época, não estava sabendo lidar.

Eu sabia, dentro de mim, que as questões profissional e financeira poderiam ser resolvidas a médio ou longo prazo, mas que não havia – pelo menos não parecia haver – uma solução para o casamento. Não vou entrar em detalhes, mas basta dizer que eu era muito inexperiente para lidar com algo que eu não queria, e que meus filhos jamais foram a causa desta situação.

Silence all the songbirds
Stilled by the killing frost

Curiosamente – ou não -, o que me impediu de cometer este ato contra a minha própria vida já em 2002 foi justamente o lançamento do álbum Vapor Trails, juntamente com a subsequente aquisição e leitura do livro Ghost Rider, escrito pelo próprio Neil Peart em que ele conta toda a sua jornada de recuperação após a morte de sua filha, Selena, e sua esposa, Jackie. Parecia que havia uma luz no fim do túnel, e essa luz ficou mais forte na semana de 18 a 22 de novembro de 2002.

Meu relacionamento, entretanto, não ia bem. Externamente, talvez por vergonha, eu me esforçava para fingir que as coisas estavam bem, mas internamente a situação estava, rapidamente, fugindo do controle. Eu estava em depressão, sem ter com quem falar e, pior, eu não queria buscar ajuda. Na minha mente analítica, eu não conseguia ver que o suicídio é uma solução permanente para um ou mais problemas temporários.

Toda esta situação acabava sendo mais ou menos contornável até 2005, pois eu passava a semana em São Paulo a trabalho, enquanto minha família morava no interior. Assim, eu só precisava “fingir que tudo estava bem” aos sábados e domingos. Porém, em 2005 mudamos todos para São Paulo e a facilidade que eu tinha em esconder o que se passava dentro de mim começou a ruir. Meus amigos mais próximos sabiam que havia algo de errado, que eu estava infeliz, mas eu havia construído uma muralha de gelo ao meu redor praticamente impenetrável, e coloquei uma máscara que dizia que “estava tudo bem”, sendo que essa máscara estava tão bem produzida que ninguém tinha idéia do que estava acontecendo.

Me tornei uma pessoa de aparência, vivendo a imagem que eu achava que os outros esperavam de mim, focando minha vida e minhas energias no trabalho. Como no verso acima, eu não escutava mais os pássaros cantando, pois eles haviam sido congelados por uma frente fria assassina, gerada no meu âmago e que irradiava para fora.

Forests burn to ashes
Everything is lost

No segundo semestre de 2007 consegui um projeto em outra cidade: Belo Horizonte. Eu queria um projeto bem longe de casa para que eu pudesse refletir com calma no futuro – se é que havia um futuro ou uma luz no fim do túnel… Na verdade, essa era a minha esperança, mas o fato é que eu queria um lugar longe para que eu pudesse colocar em prática o que eu vinha pensando há anos. As idéias se tornaram planejamento, frio e calculado, e o planejamento se tornou execução.

Era exatamente o que o verso acima descrevia: as florestas se tornaram cinzas, e tudo o mais estava perdido. Apenas um milagre poderia reverter o que estava ocorrendo.

Em tempo: hoje não tenho problemas em relembrar estes fatos, pois parece ser um passado que não mais pertence a mim – algo (ou alguém) vaporizou as memórias que transformavam este passado em algo concreto. São como cenas de um filme. E decidi escrever tudo isso para deixar um registro que sirva de exemplo: o suicídio nunca é uma solução aceitável.

Em um determinado fim de semana (a partir daqui, não darei muitos detalhes por serem pontos extremamente pessoais) me despedi de forma especial de meus filhos – me lembro da expressão de ambos, puros e inocentes, mas nem mesmo isso foi capaz, naquele momento, de me demover do que eu havia planejado – e peguei o táxi rumo ao aeroporto de Congonhas para pegar o vôo para Confins. De Confins fui para Belo Horizonte, diretamente para o edifício Séculus, onde estava trabalhando. Trabalhei o dia inteiro normalmente, indo para o hotel ao final da tarde e fiz o check-in. Até aí, tudo parecia como nas semanas anteriores: a mesma rotina, o mesmo faz-de-conta aparente de sempre. Nos dois dias seguintes, organizei os preparativos, sendo que o último deles foi o mais difícil, e que achei que não precisaria, mas algo me impulsionava a fazê-lo: o bilhete ou, no meu caso, a carta. Tudo indicava que não havia mais volta, mas até mesmo o que achamos transitório pode durar uma eternidade.

Horizon to horizon
Memories written on the wind
Washed away like footprints in the rain
Swept away like voices in a hurricane

Quando você é um consultor e está em um projeto de TI em outra cidade, as pessoas com quem você tem mais contato no cliente acabam se tornando seus cicerones, e não raro eu recebia convites de colegas, extremamente hospitaleiros, para jantar, conhecer uma praça onde tivesse um bar, ou algo do tipo. Foi assim em todas as cidades onde trabalhei, sendo que por várias vezes eu pude fazer o mesmo por colegas que vinham de fora, seja de outras cidades, seja de outros países. Neste projeto em específico, além de ter alguns tios e primos por parte de pai que moravam em “Belzonte”, acabei formando algumas amizades, sendo que seria algo disparado por uma dessas amizades que acabaria revertendo todo o processo, basicamente aos trinta minutos da prorrogação. Por motivos de privacidade, não vou dar detalhes sobre esta pessoa, mas vou chamar a pessoa de A., apenas.

Vai parecer uma cena clichê de um script de filme de segunda categoria, mas foi o que aconteceu: terminei de escrever a carta – que nunca mais peguei de volta para ler – e fui preparar meu banho. Enquanto separava as roupas que eu usaria, o celular tocou, e era A. perguntando se eu gostaria de jantar em um mini-shopping próximo à sua residência, complementando que eu deveria estar me sentindo sozinho, longe da família. Eu tinha a intenção de declinar, mas aquela esperança que às vezes vinha falou mais alto de forma inconsciente, e ao invés de uma desculpa esfarrapada, o que saiu da minha boca foi um “Claro! A que horas?”

À hora marcada, desci do táxi no endereço e me encontrei com A. Honestamente não me lembro do que comi, mas em algum momento durante a refeição, A. me perguntou sobre meus filhos. Neste momento, neste exato momento, aquela fortaleza de gelo derreteu – nem de longe completamente, mas sim uma pequena fração que, felizmente, foi o suficiente para deixar um raio de luz penetrar toda aquela barreira antes intransponível. Um pedaço do gelo se transformou em vapor e, também naquele momento, escutei uma música, não nos ouvidos ou no cérebro, mas no coração – uma música familiar, a “minha música”, que ressoava dentro daquelas muralhas de gelo, como se quisesse derrubar a muralha no grito:

In a vapor trail
In a vapor trail…

Fiz algo que não fazia há muito tempo: me abri, ou melhor, me escancarei, como se estivesse jogando a corda que me tiraria do fundo do poço. A. deve ter me achado um louco, ou alguém sem nenhum filtro de privacidade: falei de meu casamento, de como eu me sentia, do nascimento de meus filhos e de como eu me sentia triste por estar na situação em que eu estava. Eu estava desesperado, e qualquer fio de esperança que me proporcionasse um meio para resolver o meu problema temporário seria bem-vindo. A. foi esse veículo, e agradeço por A. ter sido alguém em quem pude confiar para extravasar meus problemas.

Eu estava a caminho da salvação.

Ao retornar ao hotel, horas depois, picotei a carta, joguei os pedaços na privada e dei descarga.

Washed away like footprints in the rain

Me desfiz depois dos preparativos de forma segura, e comecei a pensar o quão sortudo eu fui por pelo menos poder ter um meio para poder pensar numa possível alternativa de solução de meus problemas. Não era algo certo, mas pelo menos eu tentaria. E, o mais importante: forcei os pensamentos negativos para cada vez mais longe, pois estava disposto a viver.

Swept away like voices in a hurricane

Foram-se, ainda, alguns dias até eu criar a coragem de conversar com a minha ex-esposa e dizer que eu queria o divórcio. Sinceramente, eu queria ter tido mais maturidade para poder dizer exatamente o que eu sentia e pensava, mas eu estava apavorado e não queria desistir de forma alguma de minha vida – por isso, menti sobre os reais motivos que agora aqui estão expostos de forma extremamente superficiais, dando mais uma vez desculpas falsas. O importante era eu conseguir me separar para que eu pudesse depois reconstruir a minha pessoa.

Tive que deixar muito para trás e reiniciar minha vida, mas hoje agradeço todas – absolutamente todas – as experiências que tive e que passei, pois elas me moldaram em alguém bem mais forte: não por causa de muralhas externas que contruí em algum momento para me afastar das pessoas, mas por poder me abrir de coração às pessoas na medida certa.

In a vapor trail

Muito disso me foi ensinado nos últimos 10 anos pela minha atual e definitiva esposa, meu anjo do guarda e minha alma gêmea, que sofreu muito com todo esse processo e que é uma verdadeira fortaleza de amor. Muito provavelmente sem ela eu teria tido uma recaída, principalmente nos primeiros anos de nosso relacionamento. Ela, sim, foi capaz de derreter toda aquela muralha de gelo, dia a dia, lágrima a lágrima, transformando tudo o que havia de mais negativo em mim em simples vapor.

In a vapor trail

Vapor Trail simboliza, para mim, a minha vida, e eu nunca, jamais, tentarei convencer quem quer que seja que ela é a “melhor música já escrita” ou algo do gênero. O que desejo, de coração, é que se algum dia você escutar essa música, que você se lembre de mim, mas mais importante ainda, que você saiba que nenhum problema é permanente, por mais difícil que possa parecer, e que o tempo é capaz de curar tudo, de transformar tudo, até mesmo os problemas mais difíceis ou impossíveis em simples rastros de vapor.

In a vapor trail…

Vapor Trail

Music by Lee and Lifeson, Lyrics by Peart

Stratospheric traces of our transitory flight
Trails of condensation held
In narrow paths of white
The sun is turning black
The world is turning gray
All the stars fade from the night
The oceans drain away

Horizon to horizon
Memory written on the wind
Fading away, like an hourglass, grain by grain
Swept away like voices in a hurricane

In a vapor trail
In a vapor trail

Atmospheric phases make the transitory last
Vaporize the memories that freeze the fading past
Silence all the songbirds
Stilled by the killing frost
Forests burn to ashes
Everything is lost

Horizon to horizon
Memory written on the wind
Washed away like footprints in the rain
Swept away like voices in a hurricane

In a vapor trail
In a vapor trail

Washed away like footprints in the rain
Swept away like voices in a hurricane

In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail
In a vapor trail

2 respostas para “Vapor Trail – Parte 2”

  1. Excelente testemunho. De Facto “o suicídio é uma solução permanente para um ou mais problemas temporários.”.

    Adorei a escrita cativante. Parabéns pela coragem!

    Cumprimentos de um português…

    1. Caro Luís, obrigado. Este texto, de forma completa, estava em produção há mais de dois anos em minha mente. Nunca tinha tido a coragem de colocar para fora, apesar da minha esposa saber de tudo – e um pouco mais. O objetivo foi exatamente este: trazer à tona um assunto delicado de uma forma resolvida, mas com o intuito de demonstrar que o suicídio nunca é a solução para algo; muito pelo contrário, acaba gerando muitos outros problemas aos que ficam.
      Fico feliz que tenha gostado.
      Grande abraço de um brasileiro.

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