Ouve… e Testemunhe!

No artigo anterior, empacotamos em nossa mochila de viagem mais um apetrecho essencial para a jornada que iremos empreender quando adentrarmos em Ma’aseh Merkavah, jornada esta que citamos no artigo O Poder da Palavra, e que agora temos um pouco mais de condições, ou audácia, de explorar. Como dito naquele artigo, o Sefer Yetzirah tem, como abertura, a seguinte frase:

Com 32 caminhos místicos de Sabedoria…

No Sefer Yetzirah foi utilizada a palavra hebraica Netivot para designar “caminhos”, uma palavra que quase não aparece nas escrituras, ao invés de usar Derekh, que é a palavra usual para caminho. A diferença é que Derekh indica um caminho físico, uma estrada ou via pública, aberta a qualquer pessoa, enquanto Nativ (singular de Nativot) é uma rota particular, uma via feita especificamente para uma pessoa. Assim, os 32 caminhos místicos citados pelo Sefer Yetzirah são caminhos íntimos que D’us usou para criar toda a Criação. E, como fazemos parte da própria Criação, estes mesmos 32 caminhos podem ser trilhados individualmente, porém em sentido contrário, por cada um que deseje encontrar a imanência do Criador.

Antes, porém, de recebermos mais um pacote de ferramentas – que são os números – vamos fazer uma breve pausa em nossa jornada, para entendermos o quê estamos buscando. Afinal, como foi citado agora, cada um de nós pode trilhar os 32 caminhos individuais para percebermos a imanência do Criador. Mas quem ou o quê é o Criador?

Os números definem o atributo de quantidade ou pluralidade às coisas, enquanto as letras – ou palavras – definem o atributo de qualidade à tudo que foi criado por D’us. Porém, ao contrário do que muitas pessoas dizem ou apregoam, é importante deixar claro que D’us não possui nenhuma destas características: qualidade ou quantidade. Ele É. D’us pode se manifestar de todas as formas possíveis, e, ainda assim, continua sendo tanto o nada quanto o tudo. Mas, então, por que em Devarim (Deuteronômio, lembra-se?) 6:4, é dito o seguinte?

Ouve, Israel! D’us é nosso Deus, D’us é um.

Esta passagem define D’us tanto em qualidade (nosso Deus) quanto em quantidade (um). Assim, pode parecer que esta frase está solta dentro da Torah, ou que nem mesmo possui valor no judaísmo ou na Cabalah. Ledo engano! Esta passagem é a primeira frase da oração mais conhecida e citada do judaísmo, e uma das mais estudadas pelos cabalistas. É a primeira oração que uma criança judaica aprende, e a última a se dizer antes de morrer. Seu nome: Shemá Israel!

Se D’us não possui qualidade ou quantidade (nem mesmo “um”), por que o Shemá é tão importante?

Vamos começar pelo começo!

Em todas as representações do Shemá, uma peculiaridade é evidente, mesmo para aqueles que não conhecem nada de hebraico: duas letras – o Ayin final de Shemá e o Dalet final de Echad – são escritas maiores que as demais. Juntas, estas letras formam a palavra ed (עד), que significa testemunha. Assim, logo de início, quem está recitando o Shemá deve se colocar na posição de testemunha viva de uma verdade absoluta. A reverência, aqui, é algo fundamental, e estar disposto a tornar-se UM com D’us durante a recitação é o que se espera da testemunha.

Mas… eu não sou de Israel! Nem mesmo sou judeu! Por que eu leria o Shemá com esta dedicação, já que o Shemá diz: “Ouve, Israel!”?!?

Aí está outro conceito muito interessante, que será tratado com maior profundidade mais para a frente: Israel não é um local físico; antes, é um estado de espírito! Todo aquele que se dedica a trilhar o caminho rumo a D’us É Israel. Por isso, todo aquele que busca, com todas as suas forças e todo o seu ser, o encontro com o Divino, deve “ouvir” e “testemunhar” o Shemá!

Por isso, caso não pretenda testemunhar e ouvir, por favor, pare a sua leitura aqui e agora!

Se você se lembra do artigo anterior, que dizia que cada letra do alfabeto hebraico possui um valor numérico, podemos calcular o valor da palavra Shemá, que é 410 (300 de Shin mais 40 de Mem mais 70 de Ayin). De forma interessante, a palavra Kadosh, que significa “Sagrado”, possui o mesmo valor (quando se estuda Cabalah, o valor numérico das palavras é tão importante quanto a própria palavra, e pode fornecer pistas adicionais no estudo). Isto indica que o que está para ser “ouvido” é algo “sagrado”, e como tal deve ser tratado.

Mais uma vez: caso algo aqui não mova o seu coração, ou não impulsione seu espírito rumo ao ato de ouvir e testemunhar, por favor, interrompa a sua leitura, no aqui (espaço) e no agora (tempo)!

Uma vez que o chamado para testemunharmos e ouvirmos o que vem a seguida já foi feito, prossigamos com a análise, mantendo o coração aberto. Deixaremos a próxima palavra para depois, analisando agora o trecho “nosso Deus”.

Em hebraico, a raiz da palavra seguinte (eloheynu) é אל (El), que significa “Divindade suprema”. Adicionando-se uma letra He no final, temos a pronúncia semelhante a Alah, que é a palavra árabe para Deus. Finalmente, adicionando-se um Yod como sufixo, forma-se a palavra Elohei (אלהי). Em hebraico, a letra Yod é um sufixo possessivo da primeira pessoa, podendo ser traduzida como “meu” ou “minha”; assim, Elohei pode ser traduzido como “meu Deus”. E ao se adicionar o sufixo Nu (נו) indica-se o sentido de posse, desta vez na primeira pessoa do plural. Assim, Eloheynu poderia ser traduzido como o “nosso e meu Deus”, ou, de forma mais poetizada: “O Deus com quem todos nós possuímos mutuamente uma íntima relação”. Enfim, o meu Deus é o seu Deus, que é o nosso Deus, e que é íntimo a cada um de nós.

Se você chegou até aqui, e deseja continuar, seja forte, seja puro! Abra seu coração para ouvir e testemunhar. Caso ache que não está preparado, volte em outra hora, em outro local! Cada um tem o seu tempo.

Se você notou na tradução que fiz para o português, há uma diferenciação entre D’us e Deus. O motivo é muito simples: há, no Shemá, por duas vezes, um dos nomes de D’us, que nunca é pronunciado, por tão sagrado que é este nome! Assim, durante a leitura da Torah, as letras que compõem este nome são normalmente lidas como “Adonai” (Mestre ou Senhor), e referenciadas como “ha-Shem” (O Nome), pois, além de acreditar-se que a pronúncia correta deste nome se perdeu há muito tempo, acredita-se que este nome seja o nome mais sagrado de todo o Universo! Na época em que o Templo de Jerusalém ainda não havia sido destruído, o Sumo-Sacerdote adentrava o Santo dos Santos (local onde era guardada a Arca da Aliança com as Tábuas dos 10 Mandamentos, de entrada proibida em todos os demais dias do ano), com uma corda amarrada à cintura, no Yom Kippur (o Dia do Perdão). Então, prostrado, ele sussurrava, uma vez apenas, o nome mais sagrado de D’us: י-ה-ו-ה (formado pelas letras Yod, He, Vav, He), também conhecido como Tetragramaton. No meio judaico, este nome é transcrito às vezes como יי (duas letras Yod), YHVH, D-us ou D’us em português, em respeito ao mandamento: “Não falarás o nome de D’us em vão”.

Talvez você esteja se perguntando: “uma corda amarrada na cintura? Para quê?” O motivo é que se acreditava que a simples menção, em um sussurro, do nome mais sagrado de D’us, mesmo no Santo dos Santos, poderia gerar uma reação tão extraordinária que acabaria por matar o próprio Sumo Sacerdote. E como a entrada no Santo dos Santos era proibida, a corda era necessária para puxar seu corpo para fora.

Estamos quase lá. Se você chegou até aqui, mantenha a cabeça erguida, o coração aberto e a alma pronta para ouvir e testemunhar.

Por fim, a última palavra do Shemá é Echad, que significa Um. Porém, este número “um” definido por Echad é uma unidade dentro da pluralidade, ao contrário da palavra yachid, que indica a unicidade. Por exemplo, em Bereshit 2:24, está escrito:

Portanto deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão uma (אחד – echad) só carne.

Assim, ao dizer que D’us é Um, estamos assumindo não apenas que D’us é um, mas que D’us e toda a Sua criação são, na verdade, um. Ou seja: que, apesar de estar inserido na pluralidade, a pluralidade na verdade não existe; se a pluralidade não existe, D’us e nós somos um! E, ao dizer a palavra Echad, deve-se levar em conta – ou melhor, sentir – que estamos unidos ao Criador de forma única.

Ao analisarmos a palavra Echad, através do valor numérico de suas letras, teremos que o valor de Echad é 13 (Aleph = 1, Chet = 8, Dalet = 4). Coincidentemente (ou não), a palavra אהבה (ahavah) possui, também, valor 13. E o que significa ahavah? Ahavah significa amor.

(Pequena pausa dramática…)

Diz-se que o amor derruba barreiras, elimina as diferenças; o amor perdoa; o amor cura; o amor é o sentimento mais puro por natureza. Através do amor, pessoas e povos se unem, tornando-se um. No dia em que toda a humanidade se amar, incondicionalmente, todos seremos um. Mas, mesmo quando isto acontecer, esta união não passará de uma mera sombra pálida e desfocada em comparação com o sentimento de se tornar UM com D’us.

Como que para comprovar isto, o nome mais sagrado de D’us, citado acima, possui valor numérico 26 (13 + 13)! Assim, sem aprofundar no sentido completo do número 13, podemos afirmar que D’us não apenas é um (13), como também é amor (13), ou, em outras palavras, D’us é o amor primordial.

Interessante? Caso não esteja achando interessante, por favor, interrompa sua leitura, e retorne posteriormente, preparando-se para ouvir e testemunhar.

Para aqueles que tiveram uma formação católica, o Shemá foi citado, letra por letra, por Jesus, quando questionado pelos escribas sobre qual era o maior mandamento (Marcos, 12:29):

E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.

Para finalizar, quando do serviço matinal, ao Shemá é citado após outra oração, onde a última palavra é, exatamente, amor. E a primeira palavra da segunda parte do Shemá é… amor. Assim, ouvir e testemunhar que D’us é o nosso Deus, e que ele é Um, único com cada um de nós, envolto e nos envolvendo em um manto de amor, é o primeiro passo rumo à jornada espiritual a que estamos todos destinados.

Assim, se voce chegou até aqui, se está emocionado como eu estou, neste momento, aqui e agora, e estiver pronto para ouvirtestemunhar, por favor, siga em frente!

שמע ישראל יהוה אלהינו יהוה אחד

Sh’ma Israel! Adonai eloheynu, Adonai echad.