Bereshit ou Be Reshit? Eis a Questão!

Há muito tempo, muito mais do que possamos documentar ou imaginar, os seres humanos sentem um fascínio pelo céu. Não importa se o dia está nublado, chuvoso, se é dia ou noite, ou até mesmo se o Sol está brilhando tão forte a ponto de fazer com que até mesmo as sombras se escondam: sempre buscamos algo nos céus. Talvez por isto as religiões insistam em colocar D’us (ou deuses) no Céu. Olhar para o alto, como se estivéssemos procurando algo há muito perdido e, de certa forma, inalcançável, é algo que fazemos desde a mais tenra idade. Existe algo no “alto” que nos impulsiona.

Que algo é este?

No artigo anterior, fomos introduzidos à Árvore da Vida, uma estrutura através da qual é possível explicar toda a Criação, através das dez sefirot, seus vinte e dois caminhos, distribuídos em 3 pilares. Nos próximos artigos, começaremos a esmiuçar cada uma das sefirot, começando pela mais alta, Keter, até a mais inferior, Malkut.

Diversos cabalistas, principalmente durante o período medieval, acreditavam que a essência divina jamais poderia ser compreendida pelo ser humano. Porém, eles também acreditavam que D’us havia revelado atributos que interagiam não apenas entre si, mas também com o mundo.

O primeiro destes atributos é Keter.

A tradução de Keter (כתר) é coroa, e o nome faz jus à sua posição. Keter coroa a árvore da vida, e é o canal através do qual a Vontade Divina atua sobre a Criação. E Keter representa exatamente isto: a vontade.

Em nada que se deseje realizar existe algo que venha antes da vontade. Você está aqui, neste momento, lendo este artigo, certo? Por que? Talvez você responda: “porque quero conhecer mais sobre Cabalah!” Aí eu pergunto: “Por que?”, o que vai te levar a dar outra resposta qualquer. E este jogo continua, sendo que a cada pergunta sua, eu pergunto: “Por que?”. Só há uma forma de terminar este jogo! Quando a sua resposta for:

Porque eu quero!

Esta é a expressão da sua vontade! Nada vem antes disto, para você. O verdadeiro princípio é o seu desejo ou a sua vontade. Como testemunho deste fato, vamos voltar lá para Bereshit (Gênese) 1:1:

No princípio, criou D’us.

Deste trecho, extrai-se o nome do primeiro livro da Torah: Bereshit. De forma bastante interessante, ao se obter a raiz da palavra Bereshit, temos Be (ב) e reshit (ראשית). O prefixo be significa em ou com. Já a palavra reshit significa o primeiro.

Aqui é importante também ressaltar a forma como este trecho foi escrito; não está escrito D’us criou no princípio. Não! Está escrito de uma forma que indica que, antes mesmo da Criação por parte de D’us, algo já “existia” (por falta de palavra melhor). O que já “existia”? Respondemos isto no artigo D’us? Que D’us?, quando dissemos:

Perceber que a Vontade Divina atravessou o Nada, o Infinito, a Luz Infinita, e um raio da Vontade Divina se concentrou, passando as dez etapas da Criação, para então formar todo o Universo!

O que havia antes da Criação? A Vontade Divina, a primeira etapa da Criação, a etapa representada por Keter, o primeiro atributo da Divindade. Por consequência, a primeira faculdade no homem também é a vontade.

O ditado popular diz que “Deus é perfeito”. Sendo D’us perfeito, é natural imaginar que, ao tentar retratar o que é D’us, o ser humano utilizasse características palpáveis, tais como “paz”, “amor”, sabedoria”, “misericórdia”, etc. Mas todos estes atributos estão abaixo da Vontade, o que faria com que soasse natural que descrevêssemos D’us como sendo “a mais pura Vontade”. Porém, além de incorrer no grave e irremediável erro de tentar descrever D’us, ainda estaríamos igualando D’us à própria sefirah Keter! Isto faria com que Keter fosse substituída por D’us, e só houvessem nove sefirot na Árvore da Vida. É por isso que no Sefer Yetzirah está escrito no capítulo 1, versículo 4:

Dez e não nove. Dez e não onze.

Aqui está bem claro que o número de sefirot são dez, e que a Vontade, representada por Keter, não deve nunca ser confundida com D’us. A Vontade só existe porque D’us a criou, logo, a própria Vontade Divina faz parte da Criação. E este versículo ainda deixa claro que não se deve considerar D’us como parte da Árvore da Vida – e, consequentemente, como parte da própria Criação – senão seriam onze sefirot.

Voltando para be reshit, pode parecer confuso ou contraditório duas frases escritas anteriormente: “O que havia antes da Criação? A Vontade Divina” e “Logo, a própria Vontade Divina faz parte da Criação”. Qual frase está correta? Ou, em outras palavras: o que está errado? Afinal de contas, a Vontade Divina faz ou não faz parte da Criação?!?

A resposta é simples, porém profunda: a Vontade Divina é, literalmente, bereshitbe reshit! É o passo inicial da Criação, pois sem a Vontade Divina, a Criação não seria possível, mas, ao mesmo tempo, faz parte da Criação. É como o conjunto de números naturais: antes do 1, não há nada (zero), e sem o 1 não é possível chegar no 2, mas isto não significa que o 1 não faça parte do conjunto. Como diz o próprio Sefer Yetzirah em 1:7:

E antes do Um, o que você conta?

Para concluir, gostaria de dizer que Keter é a sefirah mais incompreensível de todas, sendo que no Zohar diz-se que Keter “é a mais oculta de todas as coisas ocultas do mundo”. Por isso, compreender Keter é uma das tarefas mais difíceis que existem.

Tão difícil quanto compreender o que você sente ao olhar para o céu…